Arquivo mensal: março 2017

Encrenca

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Não é fácil se aproximar de gente que usa os espinhos da “encrenca” (Fotografei no Jardim Botânico, RJ).

Conheço pessoas que gostam de ficar em evidência criando confusão, tecendo intrigas, colocando uns contra os outros. É uma espécie de prazer perverso, que confere o poder de atazanar a vida dos outros.

Quando trabalho com professores, muitos trazem questões envolvendo o relacionamento entre alunos. Os que são escolhidos como alvos pelos “encrenqueiros” são atingidos por fofocas, boatos, agressões verbais pesadas, tudo amplificado nas trocas de mensagens e nas postagens em redes sociais. “É liberdade de expressão: se eu não gosto dessa menina, tenho direito de mostrar isso como eu quiser” – é o argumento mais comum, que confunde franqueza com grosseria. “Ouvi dizer e espalhei” – sem a menor preocupação com relação à veracidade da informação, em uma época de avalanche de notícias falsas atualmente chamadas de “fatos alternativos” ou “pós-verdades”. É árduo o trabalho de desenvolver na garotada a empatia e a habilidade de expressar o que pensa e sente sem humilhar e maltratar os outros.

Professores da Educação Infantil, em especial, relatam dificuldades no relacionamento com as famílias que atuam como adversárias da equipe escolar, em vez de construir a parceria necessária. As “mães do whatsapp” fotografam de imediato a mordida que o coleguinha deu no filho, compartilham com a rede tecendo críticas demolidoras à escola que nada fez, estimulando a onda de indignação coletiva, reclamações nem sempre pertinentes, porque não consideram que essa manifestação de raiva entre crianças pequenas acontece de modo tão instantâneo que nem sempre é possível evitar. Mas revela a importância de começar a trabalhar a solução não-violenta de conflitos desde cedo.

Nas famílias, a encrenca acontece, por exemplo, entre irmãos. Ciúme e competição pelo lugar de destaque motivam a “brincadeira da gangorra”: para ficar por cima, precisa colocar o outro para baixo. “Ele me bateu” e o mais velho é repreendido e castigado porque ninguém percebeu a sutil provocação do mais novo que deflagrou a raiva do irmão. Tensões entre sogras e noras, competição entre cunhados também geram intrigas e mal-entendidos que fazem um “trabalho de cupim” corroendo as estruturas dos relacionamentos na família extensa. Isso revela a necessidade de mediadores de conflitos que possam neutralizar as ações do “espírito de porco” e restaurar a convivência razoavelmente harmoniosa entre todos.

No âmbito do trabalho, a inveja e a competição motivam encrencas destinadas a derrubar os que são vistos como adversários. Alianças com os que ocupam cargos mais altos na hierarquia, disseminação de notícias falsas, vale tudo para “destruir a concorrência”. Isso acaba criando mal-estar na equipe. Trabalhar no sentido de aprimorar a própria competência sem precisar apagar o brilho do outro e elaborar noções básicas de ética nas relações de trabalho são as ações necessárias.

Criando um emaranhado de problemas

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Às vezes, nos enredamos em problemas criados por nossa imaginação. Foi o que pensei ao ver essa “cama de cipós” que fotografei em Gonçalves (MG)

Alguns problemas são inevitáveis, muitos outros são criados ou agravados por nossos filtros seletivos de escuta e de memória ou de interpretação das ações de outras pessoas. Na psicoterapia, trabalhamos para desfazer emaranhados de mal-entendidos na comunicação e clarear os temas predominantes que colorem os filtros seletores da percepção.

Quando rejeição e abandono é um tema predominante em nós, interpretamos inúmeras ações em diversos contextos usando esse filtro seletivo: percebemos como rejeição quando amigos não retornam as mensagens de imediato, quando o grupo conversa sobre assuntos diferentes do que gostaríamos de propor, quando o parceiro não faz exatamente o que queremos do jeito que achamos melhor, quando a ideia que propusemos na reunião de trabalho não é aceita, quando só lembramos do que os outros deixaram de fazer por nós e esquecemos o que recebemos de bom.

Circunstâncias como essas confirmam dolorosamente a sensação de sermos rejeitados, embora haja outras interpretações possíveis para as mesmas ações (os amigos estavam ocupados com outros afazeres, a conversa do grupo evoluiu por outros caminhos, o parceiro fez o que foi possível dentro da perspectiva dele, havia ideias melhores no grupo de trabalho, não dá para ninguém atender 100% de nossas expectativas).

Usando esse filtro seletor, não conseguimos ver o que fazemos para que os outros se afastem, como nos excluímos das conversas, como recusamos as ideias dos outros, como praticamos tão pouco o reconhecimento e a gratidão, ao fazermos tantas queixas, cobranças e reclamações. O resultado é um emaranhado de problemas de relacionamento, insatisfação, frustração, infelicidade: “Minha vida é um horror, ninguém gosta de mim, nada acontece como eu gostaria”.

Cultivar pensamentos catastróficos é outro modo de fabricar um emaranhado de problemas e acabar com a nossa paz interior. Quando a filha se atrasa e o celular não responde, isso é sinal de que aconteceu uma tragédia. O sistema de alarme é ativado, o corpo da mãe se inunda de hormônios do estresse, ela entra em pânico, não consegue se concentrar em coisa alguma, só imagina o pior. Não pensa que a bateria do celular descarregou ou que a filha estava se divertindo com amigos em um lugar barulhento, não ouviu o telefone e nem checou as mensagens. Quando ela finalmente chega, encontra a mãe estressada, desesperada e, em seguida, enraivecida por ter se assustado à toa.

Se pode complicar, por que facilitar? Parece que isso norteia a vida de alguns de nós. Cultivar a gratidão, apreciar o que a vida e as pessoas nos oferecem, pensar em hipóteses menos trágicas é um trabalho a ser feito para seguir as trilhas do bem-estar. Podemos estabelecer diálogos internos produtivos para questionar “certezas” criadas por nossas carências e temores, reorganizar nossas emoções, escolher que tipos de pensamentos vamos nutrir e encarar destemidamente nossas sombras.